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Wednesday, May 17, 2006

O ESPECTÁCULO DO MUNDO E A SABEDORIA

«Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo», escreveu Ricardo Reis. Considerando detestável esta afirmação (em entrevista conduzida por Clara Ferreira Alves e inserida num documentário realizado por João Mário Grilo), José Saramago acrescenta que O Ano da Morte de Ricardo Reis quer «mostrar a esse homem, que fez essa declaração, a que apetece chamar monstruosa, que afinal de contas (...) se ser espectador do espectáculo do mundo constitui a sabedoria, então, meu caro Ricardo Reis (em 1936), aí tens o espectáculo do mundo, e agora diz-me se ser espectador disto é ser-se sábio».
Acontece que o verso do heterónimo de Fernando Pessoa (Saramago coloca-o em epígrafe no romance) é o primeiro de uma ode que destila um certo hedonismo báquico. Assegura o poeta:

Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.

Há, portanto, vinho envolvido nesta sabedoria. Mais: o bebedor tem consciência da fragilidade ontológica da sua carcaça mortal. Com efeito,

Coroem-no pâmpanos, ou heras, ou rosas volúteis,
Ela sabe que a vida
Passa por ele e tanto
Corta à flor como a ele
De Átropos a tesoura.

Mas ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto (...).

Temos, por conseguinte, a chave: recorrendo à cor do vinho (ou seja, ao sabor, não importa se branco ou tinto), o discípulo de Baco decide ocultar a evidência da morte e, com toda a certeza, as convulsões dos dias e as agitações dos homens (embora se condene a sentir outras ainda maiores). Tal atitude não parece a de um espectador que rejubile ante o espectáculo do mundo: parece, ao invés, a de alguém que evita o mundo e o seu espectáculo, e a quem é dado contentar-se com semelhantes realidades — justamente por saber evitá-las.
Todavia, se amputarmos o famigerado verso da vínica ambiência (como faz o Nobel da literatura), poderemos também interpretá-lo da seguinte forma: sábio é o que se contenta em ser espectador, uma vez colocado perante aquelas circunstâncias do mundo que lhe não solicitam qualquer acção particular. Entenda-se, não é quietismo: é prudência; não é conformismo: é discernimento. A sabedoria, neste caso, longe de ser uma extensão da vinhaça, consistirá em refrear ímpetos pseudo-revolucionários, sobretudo quando tais ímpetos expressam apenas, à sua maneira, a essência do próprio espectáculo que tencionam (ou fingem) subverter.

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